DA REDAÇÃO | Por Arlicélio Paiva
A filosofia utilizou de pensamentos abstratos para cultivar os campos dos sentimentos por um longo período. Aos poucos, a subjetividade das emoções, realidade percebida pelos filósofos, passou a ser explicada por eles mesmos como uma relação entre a mente e o corpo, como fez o filósofo racionalista holandês Baruch Espinosa (1632 – 1677), ao afirmar que “a mente humana ´percebe´ tudo o que ocorre ao seu corpo, correspondente com a mesma ordem e conexão de causas”.
Com o passar dos anos, a imaginosa seara das emoções, cultivada pelos filósofos, passou a ser semeada também pela ciência, com completo desprovimento de abstração. Os conhecimentos científicos sobre o tema foram ampliados em função de novas pesquisas, como as do neurocientista português Antônio Rosa Damásio, estudioso do cérebro e das emoções humanas. Damásio diferencia “emoções” de “sentimentos”. Para ele, “emoções são reações complexas do cérebro aos estímulos externos” e “sentimentos são experiências mentais que se passam no corpo como reação aos estímulos externos”. Portanto, as emoções desencadeiam os sentimentos. O próprio Damásio admite usar os dois termos como sinônimos, semelhante ao que acontece no presente texto, já que há íntima ligação entre ambos.
Dessa forma, a “saudade” é um sentimento que se manifesta naturalmente entre os humanos. Todas as pessoas, em um determinado momento, sente falta de alguém ou de algo que já passou. Portanto, sentir saudade pode ser bom ou ruim, dependendo da experiência vivenciada e das reações que se manifestam ao ser relembrado.
O dicionário define a palavra “saudade” como “sentimento nostálgico causado pela ausência de algo, de alguém, de um lugar ou pela vontade de reviver experiências, situações ou momentos já passados”.
Embora a emoção pela falta de alguém ou de algo seja universal, nenhum outro idioma descreve melhor esse sentimento do que o idioma português que criou a palavra “saudade”, como afirma o poeta português Fernando Pessoa – “saudades, só portugueses/ conseguem senti-las bem/ porque têm essa palavra/ para dizer que as têm”. O poeta tem orgulho pelo fato de a língua portuguesa ser a única capaz de expressar esse sentimento de modo tão visceral, despertando profundas emoções.
Talvez, essa seja a razão de a “saudade” estar tão presente nas letras das músicas dos compositores brasileiros, como fizeram Antonio Xando e Paulo Vanzolin (Cuitelinho) – “A tua saudade corta como aço de ‘navaia’ / O coração fica ‘afrito’, bate uma a outra ‘faia’ / Os ‘zoio’ se enchem d’água / Que até a vista se ‘atrapaia’”; Zé Ramalho (Entre a serpente e a estrela) – “Não existe saudade mais cortante / Que a de um grande amor ausente / Dura feito um diamante / Corta a ilusão da gente”; Hermano Silva e Vinicius de Moraes (Onde anda você) – “E por falar em saudade / Onde anda você / Onde andam os seus olhos / Que a gente não vê / Onde anda esse corpo / Que me deixou morto / De tanto prazer”; Vital Farias (Ai que saudade d’ocê) – “Não se admire se um dia / Um beija-flor invadir / A porta da tua casa / Te der um beijo e partir / Fui eu que mandei o beijo / Que é pra matar meu desejo / Faz tempo que eu não te vejo / Ai que saudade d’ocê”; e Raimundo Lopes e Cecilia Meirelles (Canteiros) – “Quando penso em você / Fecho os olhos de saudade / Tenho tido muita coisa / Menos a felicidade”.
Há outras tantas canções que tratam da saudade e que fazem parte da lembrança das pessoas por marcar momentos importantes e provocar indistintas emoções, como disse Bob Marley – “Saudade é um sentimento que, quando não cabe no coração, escorre pelos olhos”.
Em determinadas situações, o sentimento de saudade pode desencadear sensação de carência ou perda, como quando se sente a falta de um ente querido que já não permanece mais no plano terreno. Não é preocupante a situação de sentir saudade de uma pessoa por quem se teve apreço e ficar triste com a sua perda. A saudade pode gerar, inclusive, uma angústia circunstancial. No entanto, nos casos em que esse sentimento se transforma em algo mais sério, provocando constante sofrimento, a pessoa deve procurar auxílio terapêutico-profissional. Nas situações em que seja possível, ao se sentir saudade o ideal é seguir o que disse Humberto Teixeira e Luiz Gonzaga (Qui nem jiló) – “Ai quem me dera voltar / Pros braços do meu xodó / Saudade assim faz roer / E amarga qui nem jiló / Mas ninguém pode dizer / Que me viu triste a chorar/ Saudade, o meu remédio é cantar”.
Por certo, todos têm uma recordação memorável de alguma ocasião que gostaria que em tempo algum exaurisse, semelhante ao que diz o poeta Mário Quintana – “A saudade é o que faz as coisas pararem no tempo”. Nesse caso, a saudade se manifesta como um sentimento positivo, por relembrar de um tempo que jamais deveria transcorrer ou de alguém que merecia continuar presente. Em ambos os casos, o sentimento é aprazível e serve para fortalecer o indivíduo frente às reações desencadeadas, podendo, inclusive, ser útil para cingir os laços de afeto com a pessoa recordada.
Embora, muitas vezes, o sentimento de perda e de distanciamento cause aflição, a saudade deve servir para contentar a vida e vibrar com reminiscências dos momentos marcantes. Nesse sentido, Mario Quintana afirma: “É preciso a saudade para eu sentir como sinto – em mim – a presença misteriosa da vida…”.