Há hoje mais produtos fabricados e construídos do que vida orgânica no mundo — um preocupante ponto de inflexão cujas projeções só pioram
DA REDAÇÃO | Cultura&Realidade
Imagine uma faca simples, apenas com lâmina e cabo de madeira. A lâmina quebra e você a troca por uma nova. Algum tempo depois, o cabo estraga e é substituído também, mas por um de plástico. No fim das contas, você ainda terá a faca, mas ela será outra. Neste exato momento, a Terra está passando por um processo semelhante: a matriz vem sendo substituída por outra sem que possamos parar para raciocinar e quantificar. Há hoje mais produtos fabricados e construídos do que vida orgânica no mundo — um preocupante ponto de inflexão cujas projeções só pioram.
Não é fácil pesar um planeta. Graças à tecnologia de imagem de satélites, é possível mensurar grandes extensões e fazer mapas com precisão de milímetros, mas os cálculos ficam mais complicados quando a ideia é saber a massa de tudo que existe. Entretanto, o professor Ron Milo e sua equipe de pesquisadores do Instituto Weizmann de Ciência, em Israel, conseguiram chegar ao preocupante número: a humanidade já está vivendo em um mundo mais artificial do que natural. O estudo, publicado no periódico científico Nature, retrocede 120 anos e ainda extrapola duas décadas à frente. Para efeito de análise acadêmica, os pesquisadores desconsideram a água salgada e doce no comparativo — a chamada biomassa líquida de rios e oceanos, anotada em um conjunto à parte.
Em 1900, a biomassa era predominante na superfície sólida da Terra: 97% de tudo que existia era composto de vida orgânica: vegetal e animal. Entram no cálculo do micróbio à baleia, do rato ao elefante, plantas, florestas e todos os povos nos seis continentes. Do outro lado, está o que os cientistas chamam de massa antropogênica, que é resultado da atividade humana: prédios, asfalto, automóveis, fios, plástico, ferro, aço, papel processado e muito mais. Seu celular e o computador entram na conta. Até o século XIX, essa massa compunha apenas 3% do sistema.
Contudo, em pouco mais de um século (um piscar de olhos em termos astronômicos, uma vez que a Terra tem mais de 4 bilhões de anos), a situação mudou drasticamente. Segundo os cálculos de Milo e equipe, a massa antropogênica chegou neste ano a 1,1 trilhão de toneladas, superando a biomassa por uma diferença de 100 bilhões de toneladas. Pior: o Homo sapiens fez mais do que adicionar material artificial. Em seu progresso irrefreável, ele devastou 1 trilhão dos 2 trilhões de toneladas de árvores e plantas que existiam no início do século XX, levando à extinção milhares de espécies animais no processo.
O crescimento da massa fabricada aumentou em proporção geométrica, ganhando ainda mais velocidade depois da II Guerra Mundial. Se prosseguir nesse ritmo, em vinte anos pode chegar a 3 trilhões de toneladas, um número três vezes maior do que a massa biológica atual. A face da Terra está mudando de forma tão radical que deixa espantados até os mais céticos. Em 2019, antes da pandemia, 30 bilhões de toneladas de material foram produzidas em apenas um ano. Existe hoje o dobro de plástico no mundo do que animais selvagens e domésticos, sendo que boa parte está espalhada no oceano, em lixões e aterros sanitários, sem chance de se diluir em menos de 100 anos: uma herança verdadeiramente criminosa para futuras gerações.
É importante lembrar, contudo, que o plástico — apesar de todo o dano ambiental que é capaz de causar — representa apenas uma fração da massa antropogênica visível, bem menor que as construções e infraestrutura que podem ser identificadas a quilômetros de altitude. Da mesma forma, a vida humana e animal é pouco representativa na biomassa. O desequilíbrio, portanto, teve início quando o homem começou a expandir suas metrópoles, desmatando e abrindo cada vez mais áreas agriculturáveis para suprir a população crescente. De fato, se os matemáticos levarem em conta todo o conteúdo removido do subsolo em mineração e dragagem, o ponto de virada já foi atingido na década de 70.
Por outro lado, é recomendável fazer uma análise mais aprofundada dos números divulgados. O estudo, ressalve-se, é apenas uma contagem ampla, que não leva em conta o fosso de desigualdade entre nações — e as diferenças são decisivas. “É possível continuar progredindo com responsabilidade e governança, planejamento adaptado às condições socioambientais e integração entre concreto e infraestrutura natural”, disse a VEJA Eduardo Brondizio, reconhecida autoridade em estudos do meio ambiente pela Universidade Estadual de Campinas, em São Paulo, e de Indiana, nos Estados Unidos. “É fundamental reconhecer e priorizar as regiões deficitárias.”
Por mais de um século, países desenvolvidos se beneficiaram da tecnologia e da infraestrutura, enquanto os mais pobres nem mesmo conseguiram garantir saneamento básico a seus habitantes. No Brasil, estima-se que ainda falte esgoto para 100 milhões de pessoas, e será preciso construí-lo. A chave, portanto, é como quase tudo na vida: o equilíbrio.