DA REDAÇÃO | Estadão
A pandemia, na avaliação do sociólogo Simon Schwartzman, membro da Academia Brasileira de Ciências, criou um paradoxo no ensino superior. Ela acabou diminuindo as disparidades entre as escolas públicas e privadas porque houve um nivelamento por baixo entre elas. Segundo ele, estamos em um momento-chave para que as instituições repensem seus modelos de ensino e currículo, bem como o papel da ciência em todos os cursos. Em entrevista ao Estadão, o especialista em educação fala também sobre suas preocupações com o Enem.
De que forma o senhor analisa os reflexos da pandemia nas desigualdades que permeiam o ensino superior brasileiro?
De algum modo, a desigualdade pode até ter diminuído, no sentido em que as universidades privadas, que já faziam o ensino a distância em alguns cursos, continuaram, enquanto o setor público, que fazia o presencial, teve mais dificuldade para passar à nova modalidade. As pessoas que estavam estudando presencialmente em boa parte do setor público foram as mais prejudicadas. Então, nesse sentido, pode ter havido diminuição da desigualdade não porque houve melhora, mas porque houve piora. As pessoas que estavam nos melhores cursos sofreram mais. Algumas universidades públicas conseguiram reagir, mas a grande maioria teve muita dificuldade em adaptar-se ao novo sistema. Uma boa parte do setor privado já fazia educação a distância. Para eles, o impacto foi menor.
De modo geral, que dificuldades foram essas e como os cursos reagiram ao problema?
Houve grande dificuldade de mudar a maneira de ensinar, de ter equipamento adequado, os próprios estudantes não tinham recursos às vezes. Algumas universidades, eu cito o exemplo da Universidade Estadual de Campinas, fizeram um esforço muito grande de rapidamente se adequar à situação, colocar equipamentos na mão dos estudantes, inclusive financiando tablets ou computadores. Houve uma ideia de que isso [a pandemia] passaria, de que seria melhor esperar a fazer um esforço de readaptar-se e responder à nova situação.
Essa desigualdade pode ser agravada este ano? Situações que refletem diretamente nas universidades, como os problemas ocorridos no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), poderiam ampliar ainda mais o problema?
Há algum tempo, venho dizendo que o Enem precisa ser profundamente modificado. Não há sentido colocar todo ano cinco ou seis milhões de pessoas em uma prova nacional para selecionar 300 mil ou menos que vão para as universidades federais. Há um equívoco muito grande nesse formato. Além do mais, ele é incompatível com a reforma do ensino médio, que está em implementação e requer que os alunos sejam avaliados não em todas as áreas, mas sim na área de formação específica que eles irão se orientar. O Inep [Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira] tem um projeto de fazer isso mais para frente, mas, de qualquer modo, a ideia de um vestibular nacional e unificado em um dia é complicada, já está na hora de repensar se essa experiência vale a pena. Este ano, evidentemente, o problema foi muito maior e acho que vai dificultar. Não sei como o governo pretende fazer para administrar o processo de seleção para as universidades federais. Elas delegaram ao MEC a seleção de seus alunos através do Enem, mas já está em tempo de elas retomarem essa responsabilidade. Podemos ter um exame nacional para dar informação geral sobre a competência dos alunos, como existe nos Estados Unidos o [exame] SAT, mas ele não deveria ser um exame único. Pode-se fazer um exame mais simples, algumas vezes ao ano, usando técnicas de computação e a distância. Há tecnologia para isso. E as universidades deveriam retomar seu processo de seleção conforme suas preferências, suas vocações e seu público, que varia conforme a região e a área. É claro que este não é o primeiro ano em que o Enem tem problema, todo ano tem, mas este ano é mais grave. Está na hora da gente repensar isso profundamente.
A proposta de realizar um Enem totalmente online vem sendo feita há alguns anos. O senhor acredita que isso poderia suprir essas necessidades?
Se puder fazê-la a um custo razoável, acho que deve ser feito, mas o problema fundamental do Enem é que ele é uma prova única que amarra todo o ensino médio, porque as escolas se preparam para ela. Depois, ele tira das universidades a autonomia de selecionar, por exemplo, estudantes em sua região ou por outros critérios diferentes. As universidades não deveriam abandonar a responsabilidade pelo processo de seleção de seus alunos.
Considerando essas questões, como o senhor imagina que ocorrerá o ensino híbrido proposto por parte das instituições para este ano, tendo em vista os diferentes perfis de alunos inseridos no ensino superior?
Essa experiência de 2020 mostrou que há muita coisa que podemos fazer usando técnicas do chamado ensino híbrido, combinando presencial e a distância. Hoje em dia, uma boa parte dos alunos, inclusive no sistema público, tem aula à noite. E é muito melhor, em vez de viajar ou pegar ônibus para chegar depois do trabalho, poder estudar em casa com seu equipamento ou até mesmo usar o espaço da universidade, mas podendo ficar em uma mesa com seu computador estudando, em vez de ir até lá para assistir a uma aula formal. Há muitas coisas que podem ser feitas, mesmo nas universidades onde o presencial é mais importante, combinando modalidades a distância. Outra coisa, que não é ensino híbrido, é o aluno estar online, sem um professor, apenas com um material à disposição e, em algum momento, ele faz uma avaliação presencial. Isso não é ensino híbrido, é outra coisa, mas pode sim ter seu lugar para pessoas que estão trabalhando ou não estão em busca de uma formação tão sofisticada, e pode ser útil para uma qualificação no mercado de trabalho. Essa modalidade precisa ser avaliada direito, principalmente do ponto de vista da empregabilidade das pessoas, de quantos terminam [o curso], pois muitos abandonam. São modalidades diferentes para atender estudantes com características diferentes. É preciso pensar diferentes instituições para diferentes tipos de aluno, e também na questão de recursos.
O tema da pandemia, de modo mais amplo, também pode afetar os currículos do ensino superior?
Evidentemente o tema estará em todos os currículos, sobretudo nas áreas de ciências naturais e nos cursos da área da saúde. Vai ter um lugar muito importante e um impacto mais geral em toda a questão do papel da ciência nas universidades e no País. Estamos enfrentando uma epidemia e não temos capacidade de produzir vacina. Temos duas instituições bem desenvolvidas, a [Fundação] Oswaldo Cruz e o [Instituto] Butantan, mas sem capacidade de produzir o ingrediente ativo fundamental das vacinas. Pode ser que, com toda essa questão do uso da ciência como critério para definir o que precisa ser feito, como tratar as pessoas e lidar com a questão, haja uma revalorização da ciência no País. Não só na área da saúde, mas em todas as áreas. Assim como temos um problema que depende de um trabalho da ciência, como a epidemia, temos outros nas áreas de saúde, ambiental, social, temas como criminalidade, organização da cidade, uma enorme agenda onde a ciência tem papel fundamental e precisa adquirir prioridade maior. Pode ser que essa situação que estamos vivendo agora nos ajude a pensar e dar mais importância à pesquisa científica, em todas as suas dimensões.
Isso reflete o debate sobre a urgência dos cursos superiores em responderem às demandas da sociedade com maior agilidade. Como o senhor vê essa questão?
Se você olhar a pós-graduação brasileira, os cursos de mestrado e doutorado, e o que os pesquisadores estudam, [verá que] são os temas de interesse da sociedade, em todas as diferentes áreas. Eles estão pesquisando problemas de saúde, de meio ambiente, de recursos naturais, enfim, não se pode dizer que os cursos não estão olhando para os problemas que o País necessita. Em geral, eles estão olhando, mas os recursos são poucos, dispersos e descontínuos. Não se faz pesquisa financiando meia dúzia de bolsas, é preciso haver investimentos maiores, estruturas com mais recursos, um padrão de qualidade mais exigente. Há que se passar de uma pesquisa, digamos, meio amadora, o que acontece em grande parte do País com nossa pesquisa universitária, para uma pesquisa mais profissional. Existem excelentes laboratórios e departamentos, mas são poucos e com poucos recursos. Para ter uma escala, com ciência e tecnologia modernas, com resultados práticos, precisa-se de um volume de recursos mais significativo e mais conexão com as áreas de políticas públicas, empresarial, das fabricações e assim por diante.