– As chuvas deste mês de janeiro estão intensas na região, porém, distantes dos índices, distribuição e regularidade ocorridos nos três anos anteriores. Mas, também fortes, são a seca e as temperaturas elevadas que aniquilaram rebanhos, afetaram a qualidade da saúde humana e impactaram as atividades produtivas da região de Irecê em 2023. Em sentido contrário, o ano de 2024 se inicia com muitas chuvas em curto espaço de tempo, e, até o momento, longe de oferecer o mesmo nível de precipitações ocorridas nos últimos anos, em quantidade e qualidade de distribuição. Estes comportamentos são características do El Niño. Para entender melhor o que ocorre e o que fazer, convidamos o Dr. Tássio Cunha para refletir conosco estes cenários –
DA REDAÇÃO | Cultura&Realidade*
Vivemos em pleno ápice do fenômeno El Niño, com características principais de alternâncias climáticas nas diferentes regiões do planeta, afetando significativamente o modo de vida das pessoas. Em situações ditas normais, tradicionalmente as famílias produtoras da região de Irecê iniciam os preparativos dos solos para o ano agrícola, a partir do mês de agosto, práticas que se intensificam em setembro e outubro, na expectativa das “chuvas dos umbus” e as “chuvas do verde”, na segunda quinzena de novembro.
Quando o ano é considerado bom nesta região, as chuvas para os plantios de sequeiros ocorrem a partir do dia 10 de novembro, se alternando com breves dias ensolarados para os tratos culturais, seguidas de chuvas bem distribuídas no ciclo produtivo e em todos os municípios, as chamadas “chuvas gerais”.
Períodos de prolongadas estiagens, como a que ocorreu em 2023, ano que se findou sem precipitações adequadas para o plantio, são desastrosos, inferiores a 50 mm e sem chuvas na maioria dos municípios. A maior parte das áreas produtivas terminou o ano sem plantio. Quem plantou, arriscou no pó, como dizem os produtores mais tradicionais. Se no ano passado chegamos a ter no período agrícola, uma média de 1.143mm, até o presente momento, algumas propriedades rurais registraram no máximo 381 mm. Tem localidades que não chegam a 50 mm.
Os moradores da região de Irecê reclamaram das elevadas temperaturas, pontuando que nunca testemunharam os meses de outubro, novembro e dezembro tão quentes, afetando as condições de saúde da população. Não há registros oficiais de temperatura. Há quem diga que se teve até 43º C de calor em Irecê, principal centro econômico da região.
Em diversas localidades do semiárido baiano, oficialmente mais de 100 mil animais morreram por falta de água e alimentos, segundo dados da ADAB – Agência de Defesa Animal da Bahia. Organizações dos segmentos agrícolas, como Faeb – Federação da Agropecuária do Estado da Bahia e Fetag – Federação dos Trabalhadores da Agricultura/Bahia, a mortandade animal em razão da última seca foi muito maior, podendo chegar a 300 mil animais mortos.
Conforme era previsto, as chuvas de janeiro vieram firmes e confirmaram um dos aspectos do El Niño, chuvas mal distribuídas, em descompasso com as perspectivas de interesse das diversas culturas cultivadas em regime de sequeiro.
Para refletir sobre estes aspectos, convidamos o ProfessorDoutor Tássio Cunha. Mas quem é o nosso expoente? Tássio Barreto Cunha é Professor do Instituto Federal de Brasília, Campus Riacho Fundo. Geógrafo, com Bacharelado e Licenciatura pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), ele é Mestre em Engenharia Urbana e Ambiental, também pela UFPB e Doutor em Geografia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Campus de Presidente Prudente.
Natural da região semiárida, onde passou/passa a infância e as férias estudantis/profissionais banhando nas lagoas do barro vermelho de Canão/Ibititá-BA, ele atendeu ao pedido do Cultura&Realidade e nos presenteou com esclarecedoras informações. Onde aborda sobre as condições climáticas de Irecê, a região e todo o Centro Norte baiano, detalhando sobre o El Niño e seus impactos, ao mesmo tempo em que avança com reflexões acerca de questões sociais, econômicas e de como a região, inserida no semiárido nordestino pode conviver com o clima seco, temperaturas altas e chuvas rarefeitas.
Ele não deixa escapar sobre as consequências das intervenções humanas no Território de Irecê. Seguem as reflexões.
O EL NIÑO E AS ATUAIS CONDIÇÕES CLIMÁTICAS
Inicialmente é interessante dizer que o El Niño é um fenômeno natural. Há especulações que ele foi potencializado pelas mudanças climáticas globais. Nesse sentido, constata-se, um maior aquecimento da temperatura. Esses dois fenômenos juntos tornam o planeta mais quente.
Junto a isso, é pertinente saber como é que o El Niño acontece. De tempos em tempos, os ventos que predominam na parte equatorial do globo, os ventos alísios enfraquecem, esse enfraquecimento dos ventos provoca um maior aquecimento da parte equatorial do Oceano Pacífico e este aquecimento vai provocar uma maior evapotranspiração das suas águas e consequentemente mais chuvas, só que essas chuvas vão se concentrar essencialmente no oceano.
Frente a isso, se desenvolve uma circulação de ventos, que os meteorologistas chamam de células de Walker e neste momento de El Niño, ela se estende até partes da América do Sul em grande concentração, essencialmente na parte norte amazônica, sobretudo na parte brasileira, e na parte do nordeste brasileiro como um todo. No Brasil essa circulação desce com características quente e seca, ou seja, com pouca umidade e alta temperatura. iIsso impede umo maior desenvolvimento de umidade e consequentemente, de chuvas, que em anos normais, prevalecem nestas regiões. Isso ocorreu no período inicial do atual El Niño, em outubro, novembro e dezembro.
Esta condição é potencializada em anos que, conjuntamente a este fenômeno, soma-se, também, as interferências do Oceano Atlântico onde a sua umidade com temperaturas, não adentram no Nordeste brasileiro, sobretudo no Nordeste setentrional, trazendo chuvas. Então isso, quando se dá de forma conjunta, se desenvolve o Super El Niño. Pois bem, dessa forma, temos um ciclo de El Niño e ele está em plena atividade.
SOBRE O TERRITÓRIO DE IDENTIDADE DE IRECÊ
E os indícios para a nossa região, eles não são dos melhores, por conta de que?
Legado – Primeiro, a nossa região está inserida no semiárido brasileiro. Por natureza, é uma região de alta pressão que dispersa ventos úmidos. Segundo: estamos em um ano agrícola de El Niño, no qual, como era esperado, teve pouca chuva, ou nenhuma chuva na maioria das localidades, alta temperatura e somada com irregularidades no tempo e no espaço, e, consequentemente, isso tem um impacto direto frente as vidas do pessoal da nossa região, essencialmente porque esta é uma região predominantemente agrícola em que a grande parte das pessoas tem uma relação direta ou indireta com a roça, com plantios, em maioria, no formato de sequeiro, como a gente conhece popularmente por aí, e isso, numa região semiárida é muito difícil, sobretudo em anos deste fenômeno.
Temos ainda, para potencializar o fenômeno, características do passado, onde houve uma degradação enorme das nossas matas, o que, sem dúvida alguma, oferece uma contribuição relevante, quebrando toda essa característica de amortização da temperatura e reduzindo ainda, o desenvolvimento de umidade, ampliando a intensidade de calor, em anos como estes.
Consciência – Muitas vezes os setores da classe média, especialmente os que lidam com negócios (comércio, prestação de serviços, etc) tem dificuldades de enxergar estas questões. Porém, isso afeta diretamente suas vidas, porque a quantidade de valor que estes pequenos produtores desenvolvem na região, tem um volume considerável nos microcircuitos econômicos das vilas, povoados, cidades e no polo regional que é Irecê. Estas questões não devem ser desconsideradas. Pelo contrário, é mais do que relevante refletir sobre isso. É necessário se pensar em como se proteger para períodos como estes, que são absolutamente previsíveis, em que as instituições e o próprio estado, tem instrumentos que informam com antecipação, permitindo que os governos e setores sociais e econômicos possam se planejar para o enfrentamento das crises.
Se o primeiro intervalo do El Niño foi sofrido, o segundo intervalo, entre janeiro e março, deverá também ser complicado, uma vez que, como previsto, há uma precipitação chuvosa localizada no tempo, podendo favorecer ao que se chama de “seca verde”, muita chuva em algumas áreas, sem espaço de tempo adequado para os tratos culturais de diferentes culturas, afetando a dinâmica produtiva. Mas apesar disso, o capim para os rebanhos e a retroalimentação dos lençóis freáticos, ocorrem, reduzindo o sofrimento.
REDE DE PROTEÇÃO SOCIAL PARA A CONVIVÊNCIA COM O SEMIÁRIDO
Como já dito, repito, o fenômeno El Niño é natural. A ciência e tecnologia conseguem antecipar informações da sua ocorrência com brevidade. Então, como se proteger disso? É importante a gente pensar de forma multiescalar, necessário ao fortalecimento da proteção da rede social que foi se construindo sobretudo nos últimos 20 anos.
Então, essa questão da Previdência Social, dos programas sociais ligados ao Bolsa Família, a questão do fortalecimento do Salário Mínimo, a aposta em setores empregatícios, como a construção civil, são passos mais que importantes para mitigar as questões apresentadas.
Porém, de forma protagonista, é preciso olhar para os seres que estão vivendo ou complementando suas rendas diretamente do campo, das roças, onde há uma dependência direta do plantio de sequeiro, sobretudo nas culturas que prevalecem em nossa região, o milho e a mamona e nesses anos mais secos, sem dúvida alguma, a mamona.
É preciso a questão do fomento, é preciso olhar para a agricultura irrigada, sustentável, a eliminação dos usos de agrotóxicos saindo desta cadeia de controles das multinacionais que envenena, que mata, que empobrece, que endivida e muitas vezes que enlouquece os pequenos produtores. É muito importante fazer aposta diretamente numa condição agroecológica, buscar redes comerciais externas a partir desse fomento. Há um destaque a nível estadual, como esses produtores certificados com a liderança dos Povos da Mata.
Então, acredito que é mais que necessário o Estado, em qualquer uma das suas esferas de poder, seja ela estadual, federal ou municipal, olhar de uma forma protagonista para isso e também a criação pecuária, as pequenas produções, o que é o custo de ovos de galinhas caipiras, de porcos caipiras e de carneiros. Tão saborosos e conhecidos pelo sabor na nossa região.
É preciso esse fortalecimento e trazer também o conhecimento das pequenas tecnologias hídricas para implementar, junto a esses pequenos produtores e criadores, de modo a inserir diretamente dentro dessas redes, com um olhar de uma conjuntura política vinculada essencialmente junto aos movimentos sociais, seja ele a igreja progressista, seja ele o movimento dos trabalhadores rurais, sindicatos de produtores e trabalhadores rurais que estão vinculados diretamente nesta rede, ligados a associação nacional do semiárido, que tanto disponibiliza e que tanto atua na região nordeste afora.
DEVER DE CASA – Outros El Niños virão, qual serão as medidas de prevenção aos seus impactos sociais e econômicos? Que hábitos culturais precisam ser reavaliados? Ficam estas provocações para reflexões dos interessados no tema e em especial, as autoridades e os empreendimentos econômicos.
*Edição: João Gonçalves – Co-edição: Juliano do Carmo