Comparada a Virgínia Woolf e James Joyce, considerada hermética, permeada por experimentação linguística, entrelinhas e “silêncios”, com enredo praticamente inexistente e quebra das regras de pontuação — romance iniciando com vírgula e terminando com dois pontos, por exemplo — a obra de Clarice Lispector (1920-1977) não é de fácil leitura.
DA REDAÇÃO | BBC NEWS
Ainda assim, a escritora, cujo nascimento completa 100 anos hoje, dia 10 de dezembro, é uma das mais citadas na internet — mesmo que, paradoxalmente, muitos dos textos e frases atribuídos a ela não sejam seus.
Citações
Com essa complexidade toda de sua obra, muitos se perguntam por que ela é uma das campeãs de citações na internet. Há várias hipóteses.
“Isso ocorre porque há trechos de Clarice que, retirados do contexto, podem ser lidos como mensagens edificantes, lições de vida que, na maioria das vezes, dão a impressão de simplificá-la”, explica Franco Jr. “Mas em vez disso, em geral, a adulteram e criam equívocos a respeito de sua arte.”
De acordo com Sanseverino, há dois tipos de leitura para essa enxurrada de citações. “Na apresentação da nova edição do romance Água Viva, é contado que Cazuza teria lido a obra umas 111 vezes”, diz. “Como Clarice traz para primeiro plano de sua obra, uma experiência de linguagem que nos leva a colocar em xeque os padrões, sejam quais forem, quem busca se realizar fora do lugar social pré-determinado de família, de classe social, de gênero, tende a se encontrar na obra dela.”
O segundo tipo de leitura, diz ele, é o das frases feitas, retiradas do contexto, que ganham a feição de máximas, provérbios, ditos. “Ela tem, de fato, frases lapidares”, diz. “Assim, parece que há uma busca de epigramas ‘clariceanos’, que sirvam para etiquetar uma vivência. Daí a autoridade da escritora, com a aura do mistério e de suas epifanias, em contribuir para a citação.”
Para Franco Jr., a popularidade de Clarice na internet é um fenômeno que afeta a obra dela e, também, outros escritores e poetas, como, por exemplo, Caio Fernando Abreu, Carlos Drummond de Andrade e Luís Fernando Verissimo.
“As pessoas recortam trechos que as impactaram e lançam nas redes sociais”, diz. “Descontextualizados, esses trechos acabam funcionando como máximas, ‘ensinamentos’ ou autoajuda. Qualquer obra literária está sujeita isso. Talvez uma outra razão para a escolha da obra de Clarice para este tipo de procedimento esteja no fato de que se trata de uma literatura marcada pela cogitação existencial.”
A proliferação de citações de textos ou frases de Clarice Lispector, sejam dela mesmo ou atribuídas erradamente a ela, pode ser, no entanto, uma faca de dois gumes para a divulgação e conhecimento de sua obra.
“É bom e ruim ao mesmo tempo”, diz Franco Jr. “O aspecto positivo está na própria divulgação do nome e da obra literária de Clarice Lispector, pois isso pode atrair novos leitores, gente que buscará ler os contos, os romances, as crônicas.”
O lado negativo, segundo ele, diz respeito às distorções que isso pode gerar, como descontextualização e perda do sentido crítico dos textos, redução da obra à condição de texto de autoajuda, atribuição de falsa autoria a textos que ela nunca escreveu.
“Esse aspecto negativo cria episódios constrangedores, com pessoas citando textos falsos que ela nunca escreveu, por exemplo”, explica. “E a atribuição de falsa autoria, a depender das circunstâncias, pode resultar em processo jurídico.”
Em seu livro Para amar Clarice – Como descobrir a apreciar os aspectos inovadores de sua obra, a escritora e professora de literatura Emilia Amaral escreveu que Clarice Lispector “viveu e escreveu sob os signos da fascinação e paradoxo: adorada por muitos, eleita como objeto de várias tendências críticas, ao mesmo tempo avessa a diferenciações de gênero, entre outras categorias classificatórias. Bastante citada, adulterada, popularizada por um viés pseudofilosofante, a escritora é simultaneamente considerada hermética”.
A primeira tradução, reza a lenda, um escritor nunca esquece. Se for “escandalosamente má”, então, pior ainda. Foi o que aconteceu em 1954 quando Clarice Lispector (1920-1977) teve seu romance de estreia, ‘Perto do Coração Selvagem’ (1943), traduzido para o francês.
Desapontada com o trabalho de Denise-Teresa Moutonnier, Clarice chegou a escrever uma carta para as irmãs, em 10 de maio, relatando os motivos de seu descontentamento: em um trecho do livro, a tradutora trocou “porcaria” por “excremento” e, em outro, “olheiras negras” por “óculos escuros”.
Mais adiante, confundiu o substantivo “chamas”, sinônimo de labaredas, pelo verbo “chamar”. Foram, ao todo, quase 30 erros.
Clarice já estava decidida a dar o caso por encerrado quando foi convencida por Érico Veríssimo (1905-1975) a escrever uma carta ao editor, Pierre de Lescure, manifestando sua insatisfação.
Em resposta, o dono da editora Plon explicou, no dia 13 de junho, que, antes de ser publicado, o livro fora enviado à autora, para ela dar seu aval. Perplexa, Clarice respondeu, em 20 de junho, que não recebera carta nenhuma, tampouco o texto traduzido.
“Chateada com a tradução malfeita, chegou à conclusão de que teria de conformar-se. O melhor era esquecer que o livro havia sido traduzido”, explica a biógrafa Teresa Cristina Montero Ferreira, autora dos livros Eu Sou Uma Pergunta – Uma Biografia de Clarice Lispector (Rocco, 1999), que vai ganhar uma edição revista e ampliada em 2021, e O Rio de Clarice: Passeio Afetivo pela Cidade (Autêntica, 2018).
Doutora em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio (PUC-Rio), Teresa Montero explica que Clarice só foi traduzida na França, em 1954, por iniciativa da diplomata brasileira Beata Vettori (1909-1994). Entre outros cargos, ela foi cônsul-geral em Paris e embaixadora em Quito.
“Ela também escrevia e, certamente, viu o talento da ‘esposa do diplomata’ Maury Gurgel Valente”, observa. Quanto ao imbróglio envolvendo Clarice e Pierre de Lescure, tudo terminou bem. Ou quase.
“Sim, Clarice detestou a tradução e chegou a escrever uma carta para a editora com reclamações. Mas, depois, mudou de opinião e procurou desfazer a situação desconfortável”, esclarece Nádia Battella Gotlib, doutora em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP) e autora de Clarice – Uma Vida que se Conta (Ática, 1995).
‘Melhor do que Jorge Luís Borges!’
Na semana em que se comemora o centenário de Clarice Lispector, a autora de Laços de Família (1960), A Paixão Segundo G.H. (1964) e A Hora da Estrela (1977) é, segundo levantamento da UNESCO de 2012, a escritora brasileira mais traduzida do mundo: 113 traduções.
Entre os autores de língua portuguesa com mais títulos traduzidos, é a única mulher num ranking só de homens, como José Saramago (534), Jorge Amado (421) e Fernando Pessoa (374). Clarice ocupa a nona posição, à frente de Machado de Assis (97). Com 1.098 traduções, Paulo Coelho é o primeiríssimo colocado.
Traduzida para 32 idiomas, do mandarim ao croata, do norueguês ao russo, do turco ao hebraico, Clarice já foi publicada em 40 países: os mais recentes são Macedônia, Hungria, Sérvia e Eslováquia.
“Clarice atinge o âmago das questões humanas e extra-humanas. Sua obra é continuamente moderna e atual. Hoje, ela é parte do cânone da literatura mundial. Não há mais como ignorá-la”, assegura Marília Librandi, doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (USP) e professora de Literatura Brasileira da Universidade de Stanford, na Califórnia.
Passado o susto inicial com Près Du Coeur Sauvage, a malsucedida tradução em francês de Perto do Coração Selvagem, A Maçã no Escuro (1961) ganhou versões em alemão, Der Apfel im Dunkeln, de 1964, e em inglês, The Apple in the Dark, de 1967.
Nos EUA, Clarice chegou a ter, em junho de 1964, três contos traduzidos pela poetisa Elizabeth Bishop (1911-1979) para a revista The Kenyon Review: Uma Galinha (The Hen), A Menor Mulher do Mundo (The Smallest Woman in the World) e Macacos (Marmosets). “Melhor que Jorge Luís Borges!”, elogiou Elizabeth Bishop, em carta escrita em 1962 e incluída na antologia Uma Arte: As Cartas de Elizabeth Bishop (Cia das Letras, 1995).
Amor à primeira leitura
Professor do Departamento de Português e Espanhol da Universidade de Vanderbilt, em Nashville, no Tennessee, Earl E. Fitz foi um dos primeiros a estudar Clarice Lispector nos EUA.
Em março de 1971, ele cursava Literatura Comparada na Universidade de Nova Iorque quando, durante um seminário sobre o moderno romance brasileiro, Gregory Rabassa (1922-2016), um de seus professores, indicou a leitura de The Apple in the Dark. Foi amor à primeira leitura.
“Logo nas primeiras páginas, tive certeza de duas coisas: que adorei aquele romance, e que eu, um jovem estudante de doutorado, dedicaria minha vida a estudar Clarice e sua obra”, derrama-se. “Décadas depois, Clarice e seu mundo poético, filosófico e profundamente humano continua a me ensinar coisas novas. Todo dia, é uma epifania diferente”.
Fitz não é o único. Da nova geração, Katrina Dodson é outra admiradora confessa. Ela é a responsável pela tradução de The Complete Stories (New Directions, 2015), antologia que reuniu, pela primeira vez num único volume, todos os contos.
Doutora em Literatura Comparada pela Universidade da Califórnia em Berkeley, Katrina conheceu Clarice em 2003, quando lecionava inglês num colégio particular do Rio. Por indicação de amigos, comprou A Paixão Segundo G.H. que leu durante uma viagem de barco, de três dias, entre Manaus e Belém pelo Amazonas. “Um delírio total” foi sua primeira impressão.
Nove anos depois, veio o convite do biógrafo Benjamin Moser. O trabalho, conta, durou dois anos e a deixou “esgotada”. “Foi difícil inventar uma voz para cada um de seus 85 contos. Me senti como uma atriz interpretando várias vozes em um mesmo palco”, compara. Sua tradução ganhou o prêmio PEN 2016, um dos mais prestigiados. “Uma tradução extraordinária de uma autora excepcional”, disseram os juízes.
Clarice não é apenas a escritora brasileira mais traduzida do mundo. É também a mais estudada. Aqui e lá fora. É o que revelam dois estudos: um da Universidade de Brasília (UnB), realizado pela doutora em Literatura e Práticas Sociais, Laetícia Jensen Eble, com 2,1 mil doutores em literatura brasileira no país; e outro da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), coordenado pelo professor de Literatura Comparada, João Cezar de Castro Rocha, com 224 pesquisadores residentes no exterior.
No primeiro trabalho, Clarice ocupa o terceiro lugar no ranking geral, com 63 citações – atrás de Machado de Assis (122) e Guimarães Rosa (100). No segundo, são 117 menções. À sua frente, apenas o “Bruxo do Cosme Velho” (135).
“Ao longo dos últimos anos, o número de trabalhos acadêmicos baseados na obra de Clarice aumentou consideravelmente. Até os anos 1980, era possível ler a totalidade do que se publicava sobre ela. Depois disso, o número de artigos, resenhas e livros aumentou tanto, aqui e lá fora, que se tornou impossível conhecer todos eles”, admite Nádia Gotlib.