Arlicélio Paiva
A última investida do exército brasileiro que culminou com o massacre de Canudos aconteceu no dia 5 de outubro de 1897. Esse importante fato histórico ocorrido no sertão da Bahia permanece vivo, nos relatos de “Os Sertões” de Euclides da Cunha e na memória daqueles que o reconhecem como o morticínio mais cruel e covarde contra milhares de imolados famintos e miseráveis.
No início da República, o Brasil encontrava-se em efervescência social, com revoltas em várias regiões. Não havia apoio popular ao novo regime, que foi instaurado por um golpe militar. O país era administrado por um pequeno grupo de pessoas que se revezavam no poder, protegendo as elites regionais. Uma década antes desse período, o sertão nordestino foi atingido por uma grande seca, que causou a morte de cerca de 500 mil pessoas e forçou milhares delas a migrarem para outras regiões do país. A população sedenta e faminta, relegada pelo Império (regime de governo da época), perambulava pelas ruas em busca de sobrevivência. Esse martírio perdurou por décadas e o Ceará foi o estado mais duramente atingido.
Foi nesse contexto que o cearense Antônio Vicente Mendes Maciel, mais conhecido como Antônio Conselheiro, depois de ter sofrido agruras e decepções na vida, passou a peregrinar pelo sertão nordestino, fazendo pregações de cunho religioso, dando esperança a pessoas que se encontravam em extremo estado de desgraça e relegadas pela República recém-proclamada. Os sertanejos estavam abandonados e vagueavam pelas ruas sem ter o que comer, nem onde dormir. Os desamparados se sentiram acolhidos pelo discurso do beato Conselheiro, que atraiu milhares delas, seguindo-o até o Arraial de Belo Monte, conhecido atualmente como Canudos, onde encontraram mínimas condições de sobrevivência com dignidade.
Conselheiro e seus desvalidos chegaram a Canudos em 1893, onde encontraram 50 casas de taipa construídas nas terras de uma antiga fazenda de gado, localizada nas margens do rio Vaza-Barris. Apenas quatro anos depois da sua chegada, Canudos contava com uma população de 20 mil pessoas e cerca de 5.200 choupanas. Os infelizes vieram de todas as localidades, em busca de condições de sobrevivência, deixando fazendas, freguesias e cidades esvaziadas. Euclides da Cunha registrou que “O povoado novo surgia, dentro de algumas semanas, já feito ruínas. Nascia velho”.
Naquela época, Salvador, capital do estado, possuia 200 mil habitantes e Canudos era a segunda cidade mais populosa do estado. Para conter tanta gente de índole diversificada, desde o “crente fervoroso” ao “bandido solto” – como disse Euclides da Cunha –, aglomerada em um amontoado de casebres, as regras de comportamento impostas eram rígidas. O poder era hierarquicamente distribuído para administrar Canudos. Nas suas reuniões diárias, momento em que aconselhava o seu povo, o beato combatia a profanidade, exigia que as pessoas participassem das orações no final do dia de trabalho, encorajava o jejum prolongado e ordenava que fizessem penitências. Conselheiro tinha domínio sobre todos os seus seguidores, julgando e prendendo aqueles que infligiam às regras impostas. A severidade do regime foi descrita por Euclides da Cunha – “Exercitava-se, não raro duramente, cominando penas severíssimas sobre leves faltas”.
Antônio Conselheiro acolheu os excluídos do seu tempo, dando vez e voz a quem era menosprezado pela República. Quando chegavam a Canudos, as pessoas doavam o dinheiro que traziam, resultante da venda de seus imóveis e víveres, para benefício da coletividade. Grupos eram formados para realizar mutirões. Pedreiros, carpinteiros e ajudantes trabalhavam na construção de casas, cemitérios e igrejas. Parte dos agricultores ficava responsável pelas criações de animais; outra parte era responsável pelas lavouras. Os alimentos que abasteciam a comunidade vinham de um sistema de produção coletiva. Havia os que eram responsáveis pela comercialização de produtos excedentes e compra de mantimentos. O pobre infeliz era amparado em Canudos. Tinha um nome, uma casa simples para morar, um prato de comida, respeito e alguma serventia.
Assim como a República ignorava o povo marginalizado que chegou a Canudos, Conselheiro também desprezava o regime republicano. Ele pregava contra a República, seus impostos e suas leis. Desafiava os poderosos e enfraquecia o poder das autoridades. A nova cidade, que recebia tanta gente, era governada de forma autônoma e independente e passou a importunar os poderosos e privilegiados. A imprensa publicava boatos e gerava pânico entre a população, que cobrava do governo uma investida sobre Canudos. Conselheiro era constantemente desqualificado e perseguido. As mentiras inventadas contra ele, como a de que ele tinha assassinado a própria mãe e a esposa, levaram-no a ser preso injustamente. Foi libertado posteriormente, por falta de provas.
A primeira expedição militar contra os religiosos, seguidores de Conselheiro, ocorreu em novembro de 1896. Naquele ano, Conselheiro pagou adiantado certa quantia a um Juiz de Direito de Juazeiro na Bahia, pela compra de madeira que seria utilizada para a construção de uma igreja. Como a encomenda não foi entregue, as autoridades sabiam que os sertanejos iriam buscar na marra e se prepararam para o combate. O encontro dos 104 soldados, armados de fuzis, comandados pelo tenente Pires Ferreira, com os 300 sertanejos, portando armas rudimentares, ocorreu em Uauá. Foram 10 baixas por parte dos militares contra 150 mortes de sertanejos. Ainda assim, os militares exaustos bateram em retirada, para poupar as próprias vidas. Euclides da Cunha escreveu – “Foi como uma fuga. A travessia para Juazeiro fez-se a marchas, em quatro dias. E quando lá chegou o bando dos expedicionários, fardas em trapos, feridos, estropiados, combalidos, davam a imagem da derrota”.
A segunda expedição contra os insurgentes foi comandada pelo Major Febrônio de Brito e o confronto ocorreu no dia 18 de janeiro de 1897, na serra do Cambaio. Dessa vez, a tropa do exército contou com o reforço da polícia baiana, totalizando 600 homens fortemente armados, inclusive com canhões e metralhadoras. Após 5 horas de batalha contra cerca de 4 mil matutos, o Major Febrônio bateu em retirada para Monte Santo, onde relatou – “A tropa está morta, extenuada, maltrapilha, quase nua e é impossível refazer-se em Monte Santo”. Não se sabe o número exato de baixas, mas, pelo relato de Euclides da Cunha, presume-se que do lado das tropas oficiais foram “quatro mortos e vinte e tantos feridos” e dos sertanejos foram “trezentos e tantos mortos”.
A terceira expedição foi comandada pelo Coronel Moreira César, um herói do exército brasileiro na época, experiente em batalhas contra os federalistas em Santa Catarina, sendo conhecido como “corta-cabeças”. A tropa era composta por cerca de 1.300 homens do exército e da polícia baiana equipados com quatro canhões, 70 tiros de artilharia e 15 milhões de cartuchos. A resistência sertaneja era composta por 8 mil homens que portavam “armas ridículas” (Euclides da Cunha). O instrumento de defesa mais potente era o bacamarte. Eles utilizavam pedras, pedaços de pregos e pontas de chifre como bala.
O impetuoso Moreira César subestimou Canudos, pois acreditava que os homens estavam desarmados e que Conselheiro iria fugir perante a sua presença. Antes de chegar a Canudos, Moreira César teve ataques epiléticos, o que o deixou abatido. Depois de recomposto, reuniu os homens e, de acordo com Euclides da Cunha, pronunciou – “Canudos está muito perto… Vamos tomá-lo! Vamos almoçar em Canudos!”. A principal batalha ocorreu no dia 3 de março de 1897, dentro de Canudos. Os becos estreitos do arraial serviam como armadilhas para os soldados. Moreira César foi alvejado em combate, morrendo horas depois. A tropa passou a ser comandada pelo Coronel Tamarindo que, após sete horas de combate, decidiu recuar. O pavor, relatado por Euclides da Cunha, de quem acreditava que iria “tomar o arraial sem disparar um tiro, à baioneta”, levou o Coronel Tamarindo a pronunciar – “É tempo de murici, cada um cuide de si…“. A tropa debandou, abandonando armamento, munição, alimentos e os soldados feridos. O Coronel Tamarindo também morreu no confronto.
A imprensa da época noticiou, sob comoção muito forte, o fiasco da expedição comandada por Moreira César. Divulgava que a República corria perigo e parecia que o único objetivo da expedição foi “municiar os jagunços”. A quarta expedição começou a ser planejada de imediato pelo próprio Ministro da Guerra, que nomeou o general Arthur Oscar de Andrade Guimarães como comandante. Batalhões de quase todos os estados brasileiros foram enviados para Canudos. Correspondentes dos principais jornais foram enviados para a região, dentre eles Euclides da Cunha, que trabalhava para “O Estado de São Paulo”. O ataque com armamento pesado foi executado por duas colunas, a primeira comandada pelo general João da Silva Barbosa e a segunda pelo general Cláudio do Amaral Savaget. O total de soldados nessa expedição foi estimado entre 8 mil a 10 mil homens. Foram travadas várias batalhas entre junho a outubro de 1897. A cidade cercada começou a ser bombardeada ao amanhecer do dia primeiro de outubro. Depois de intenso bombardeio e chuva de balas, atearam fogo nos casebres da cidade. No dia 5 de outubro de 1897, as forças militares dominaram o arraial de Belo Monte e encontram, numa trincheira próxima da igreja nova, quatro derradeiros defensores, que não se renderam.
A narrativa de Euclides da Cunha retrata muito bem o genocídio praticado em Canudos, contra pessoas que foram tratadas com desprezo pela República, que tinha o dever de protegê-las. A resistência perante as tropas federais dá mais sentido ao que disse o autor a respeito daquele povo – “O sertanejo é, antes de tudo, um forte” – forte de quem teve firmeza e resistência para não se render perante a investida covarde das forças militares sobre um povo injustiçado.
Euclides da Cunha conclui o seu livro, dizendo – “Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até ao esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente 5 mil soldados”.
Antônio Conselheiro morreu em 22 de setembro de 1897, em consequência do massacre. Seu corpo foi encontrado pelos soldados, debaixo dos escombros de uma igreja. Foi degolado e sua cabeça enviada para ser estudada em Salvador. Nos 11 meses de investida sobre Canudos, morreram cerca de 5 mil soldados e 25 mil sertanejos.
Embora o Imperador D. Pedro II tenha afirmado após a seca de 1877 que “Não restará uma única joia na Coroa, mas nenhum nordestino morrerá de fome”, a fome saiu do Império e adentrou a República, na barriga dos sertanejos. Em vez de acolher o povo sofrido, o governo republicano achou por bem exterminar à bala os sobreviventes da fome. O abismo social era tamanho que parecia que o Nordeste seco não pertencia ao Brasil. De acordo com Euclides da Cunha, os soldados “Sentiam-se fora do Brasil”.
A última investida do governo contra Canudos ocorreu no período de 1951 a 1968, com a construção do açude de Cocorobó, no vale do rio Vaza-Barris, que deixou a cidade de Conselheiro debaixo d´água. Apesar de todos os ataques, Canudos não se rendeu!