Decreto prevê parcerias com a iniciativa privada para a construção, a modernização e a operação de unidades básicas de saúde no país
DA REDAÇÃO | Viva Bem
A notícia do decreto federal publicado ontem (27) que autoriza estudos de parcerias para o setor privado construir e operar postos de saúde no país teve um gosto amargo para quem defende o SUS (Sistema Único de Saúde).
Tidas como porta de entrada do SUS, as unidades básicas de saúde entraram na mira de um programa de concessões e privatizações do governo, o PPI (Programa de Parcerias de Investimentos). A medida gerou reação de especialistas e entidades em saúde, que temem uma “privatização” na área, hoje um dos pilares do atendimento no sistema público.
A Pesquisa Nacional de Saúde, divulgada no dia 4 de setembro deste ano pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), mostrou que, em 2019, 28,5% dos residentes no país tinham algum plano de saúde médico ou odontológico. Nas regiões Norte e Nordeste, somente 14,7% e 16,6% das pessoas tinham plano de saúde.
Ou seja, mais de 70% da população brasileira vai usar o SUS (Sistema Único de Saúde) quando precisar de algum atendimento médico, usar medicações de alto custo ou da Farmácia Popular e até na hora do transplante de órgãos, fila que é regida pelo sistema.
No dia 19 de setembro o SUS completou 30 anos, dia em que foi sancionada a lei 8.080/1990, responsável por operacionalizar o atendimento público da saúde no Brasil. O sistema, em si, foi instituído pela Constituição Federal de 1988, em seu artigo 196, como forma de efetivar o mandamento constitucional do direito à saúde como um “direito de todos” e “dever do Estado”.
Um dos braços mais importantes do SUS, senão o mais, é a atenção primária, que nada mais é do que o “primeiro nível de atenção em saúde e se caracteriza por um conjunto de ações, no âmbito individual e coletivo, que abrange a promoção e a proteção da saúde, a prevenção de agravos, o diagnóstico, o tratamento, a reabilitação, a redução de danos e a manutenção da saúde com o objetivo de desenvolver uma atenção integral que impacte positivamente na situação de saúde das coletividades”, segundo o site do Ministério da Saúde.
É a porta de entrada de quem procura atendimento, o popular “postinho”. Atualmente, o país tem 44 mil unidades básicas de saúde. Uma atenção primária bem estruturada consegue resolver cerca de 80% das queixas de saúde mais comuns. Há diversas iniciativas relacionadas, sendo uma delas a Estratégia de Saúde da Família, que leva serviços multidisciplinares às comunidades por meio das unidades de saúde da família.
“O trabalho na UBS [Unidade Básica de Saúde] é muito dinâmico e complexo. A maioria das pessoas acredita que o trabalho no posto de saúde é simples, numa alusão ao básico do nome. Mas atendemos desde uma consulta de pré-natal ou de saúde da criança até problemas de saúde mental e mediação de conflitos”, exemplifica Roberto Jaguaribe Trindade, médico de família e comunidade pela SBMFC, especialista em pediatria clínica pelo CAEPP do Instituto da Criança do HC-SP, responsável técnico da UBS Inácio Monteiro (SP) e colunista de VivaBem.
Um dos quatro atributos essenciais da atenção primária de saúde definidos por Barbara Starfield, que foi professora, estudiosa do tema e pesquisadora da Universidade Johns Hopkins (EUA), é a longitudinalidade, ou seja, a “ligação continuada entre a população e sua fonte de atenção deve refletir-se em relações interpessoais intensas que expressem a identificação mútua entre as pessoas atendidas e os profissionais de saúde”. Em resumo: uma bela relação médico-paciente.
Fernando Pigatto, presidente do CNS (Conselho Nacional de Saúde), classificou de “arbitrariedade” o decreto presidencial. A entidade está avaliando o texto em sua Câmara Técnica da Atenção Básica para tomar as devidas providências legais. “Precisamos fortalecer o SUS contra qualquer tipo de privatização e retirada de direitos”, afirmou em vídeo nas redes sociais.
“Lidar com a população levando em conta não somente suas doenças, mas também seus modos de vida, suas crenças, suas relações com o meio em que vivem, suas expectativas e sentimentos é difícil, mas maravilhoso! Quando a população entende a proposta, procura a equipe não somente para resolver problemas de saúde, mas também para manutenção da saúde”, afirma Trindade.
Para Ricardo Heinzelmann, da SBMFC (Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade), a notícia do decreto ameaça políticas nacionais que ocorreram pela atenção básica —caso da Saúde da Família, que ajudou a reduzir indicadores de doenças crônicas e mortes no país. “Qual seria o interesse do setor privado para atuar nesse nicho do mercado?”, questiona em entrevista à Folha de S.Paulo. “Há risco de se perder ações importantes da saúde da família, como a abordagem comunitária. Falamos de uma população vulnerável”, completa.
Daniel A. Dourado, médico, advogado sanitarista e pesquisador da USP e da Universidade de Paris, comenta, em seu Twitter, que prestadores privados sempre existiram no SUS, como leitos hospitalares contratados na rede privada. “Esse decreto não trata disso. Enfim, esse decreto trata do que exatamente? Ninguém sabe direito. A redação está muito ruim e obscura. Por isso é preocupante. Fato é que inserir lógica da iniciativa privada (visando lucro) no SUS não é possível”, diz.